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Lugares de Impermanência

Mônica Zielinsky

A discreta luz filtrada em cor que se irradia pela exposição, oriunda da parte su- perior da arquitetura e através de suas clarabóias, se configura como obra. Mas abre um outro sentido de obra artística, a que foge à materialização de objetos, corpos, matéria e imagens. Obra para Lucia Koch é a transformação profunda da experiência, o afetar um sujeito em algum lugar. A percepção visual, pela incidên- cia da cor como variação da luz, s altera sistematicamente, pois nela interferem, a cada instante e na arquitetura na qual se desenvolve o trabalho, os diferentes momentos de alterações luminosas, o movimento dos corpos no ambiente, as relações impermanentes estabelecidas entre sujeitos, coisas e lugares.

Assim, pelas transformações constantes da ambiência e dos aspectos mencio- nados, a obra da artista é estruturada pela instabilidade, tudo nela vem a ser transitório. Lucia não permite, por seu trabalho, a existência de uma percepção fixa do mundo. Lembrando experiências realizadas na história da pintura moderna, conhece-se que tanto Manet, como Seurat e Cézanne se dedicaram a discussões singulares e a rupturas trazidas ao campo da percepção. Cada um a seu modo, e no campo da pintura, realizou descobertas inovadoras sobre a indeterminação da percepção atenta, em especial ao considerarem eles a instabilidade como uma possível base para a reinvenção da experiência perceptiva e das práticas repre- sentativas.20 Nessa perspectiva, a artista propõe também em seu trabalho a tran- sitoriedade como um fator essencial de recriação perceptiva. Essa instabilidade propicia, por sua natureza, conexões sempre mutáveis entre os fatos percebidos, ao exigir readaptações, relações de troca, em especial, outras continuidades no processo perceptivo. Tais aspectos se dão pelas alterações cromáticas entre um ambiente e outro, pelas mudanças de tons da luz em horários distintos do dia, pelas sombras advindas de trânsitos dos visitantes sobre paredes e solos, pelas novas conexões que podem ser estabelecidas entre tantas outras muta- ções possíveis.

Assim, mesmo instável, a percepção que Lucia propicia por sua obra, se vincula ainda à idéia de certa tensão subjacente, de uma possível espera por desven- dar outras sensações no ambiente, como Crary aponta em relação à atenção.

Ao imergir na ambiência cromática do espaço, somos diretamente envolvidos por um sentido de estranhamento prazeroso, ao olhar-se a arquitetura por um novo ângulo, não por padrões dados, mas por possíveis transformações geradas pelo trabalho da artista e que se expandem à nossa percepção no espaço.

Entre tantos artistas contemporâneos, muitos convocam de maneira crítica a experiência e a percepção humana, tanto ao testarem seus limites como ao es- tenderem suas possibilidades. Com a proliferação dos recursos tecnológicos e eletrônicos alteram-se suas capacidades de ver, pensar, também as que se refe- rem à sua compreensão do tempo, sabendo-se que a arte se reconfigura siste- maticamente em relação às transformações do conhecimento e da experiência. Assim, artistas como Daniel Buren, Kazuo Katase, Ângela Bulloch, James Turrell, entre muitos outros, têm trazido suas recriações de espaços em âmbito expo- sitivo, envolvendo a questão cromática nos lugares discutidos por suas obras. Mesmo sendo uma prática de grande interesse na arte contemporânea, cada ar- tista evidencia suas operações específicas.

O trabalho de Lucia Koch tem, nesse sentido e como ponto de partida, uma resposta à linguagem da arquitetura e responde a essa linguagem com a arte. Pensa constantemente no movimento entrecruzado de duas intencionalidades, a do arquiteto e a sua como artista. E sob essa perspectiva, a construção de Álvaro Siza, em sua grandeza espacial, em suas rampas serpenteadas, sempre considerou a incidência da luz como um foco primordial, como assim ele refere: “No fim da tarde já havia essa luz suave do oeste – bem, foi uma confirmação”.22 Lucia Koch, por sua vez, interage com a obra do arquiteto pela natureza específi- ca de seu trabalho, este voltado aos problemas das variações luminosas. Assim, a sala de exposição que expande a claridade com coloração azulada interfere sobre a obra de Elaine Tedesco. O Observatório de pássaros desta artista, situ- ado na mostra como um espaço de estranhamento, ao ganhar essa filtragem de luz, vê fortemente ampliado o âmbito pouco comum do seu trabalho. Como uma valiosa negociação entre as artistas, Elaine Tedesco e Lucia Koch se associam nesse planejamento, um fato que as faz integrar a questão autoral dos trabalhos. No espaço em que é exposto o trabalho de Karin Lambrecht não são empregados filtros de cor, mas esta lacuna estabelece, por sua vez, um ritmo importante na percepção de conjunto da exposição.

Ao filtrar a luz em tons inverossímeis, a partir dos matizes do âmbar sobre a sala onde se expõem as fotografias de Elaine e de Lucia, desta última mostrando-se os seus módulos Olhos do arquiteto,23 propiciam-se alterações na experiência do visitante. Essas interferências se dão na sua percepção do conjunto do espaço como um todo, ao provocar nele um estado alterado. Em especial, ao poder esta- belecer relações com as outras salas que ocupam o mesmo patamar do prédio, esses espaços são mais fortemente alterados pela percepção.

Lucia busca em seu trabalho criar estratégias de experiências relacionais. Sua atenção primordial é o sujeito afetado sensorialmente e, neste processo, ele será levado, pela proposta da artista, a recusar a percepção fixa e estável das coisas. Optará pelas relações entre as diversas “correções de luz” dentro do es- paço, de uma a outra, de um lugar a outro, e poderá, a partir disso, estendê-las para outras articulações além daquele lugar.

Mostra-se, a partir das reflexões de Michel de Certeau, uma distinção entre espa- ço e lugar, cara às reflexões sobre a proposição artística de Lucia Koch: “um lugar é a ordem (seja qual for), segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência […] Implica uma indicação de estabilidade”. No entanto, compreende-se que na obra da artista lugar não pode ser visto como uma ordem, mas como uma distribuição de elementos de coexistência, as que tornam seu trabalho fundamentalmente relacional. Também, não indicam estabilidade, mas impermanência, pois cada lugar provoca, em sua obra, uma oscilação no tempo, uma mutação possível oferecida à recepção do espectador. Ao se descer as rampas iluminadas com “correções de cor” provenientes das clarabóias, os sinuosos corredores se transformam em atmosferas cromáticas, móveis e transitórias conforme os tempos diversos de incidência da luz solar, em especial, conforme determinarem os movimentos dos corpos em suas estratégicas trajetórias. Não são esses lugares uma indicação da estabilidade a que se refere Certeau, mas sim os das transformações da experiência, das alterações de estado perceptivo, da mobilidade relacional e das óticas multifocais dos fatos apreendidos sensorialmente.

Espaço, por sua vez, nas palavras de Certeau, vem a ser “o efeito produzido pelas operações que o orientam, circunstanciam, o temporalizam […]”.25 Assim, na obra de Lucia Koch pode-se compreender o espaço arquitetônico como aquele interfe- rido pelo seu trabalho de artista, em uma quase fusão; torna-se ele deste modo um “espaço praticado”, como denomina Certeau, constituído por um sistema de signos,26 os que se voltam a corrigir o espaço, a potencializá-lo no tempo e a gerar atmosferas distintas.

Na mesa de seus documentos apresentada na exposição encontram-se meticu- losas maquetes de seu trabalho, miniaturas dos corredores de acesso. Também se vêem estudos detalhados das coberturas onde acontecem as “Correções de luz”, vários filtros, como amostras de cores e fotografias. Mas dispõem-se tam- bém sobre essa mesa vários estudos de janelas com filtros de acrílico, para as janelas da construção.

Esses projetos constituem uma parte importante da mostra de Lucia Koch, os de janelas desdobradas em outras janelas. Cada abertura localizada nas rampas contém uma silhueta de outra janela nela recortada, em formatos e cores diver- sas. Constituem elas, cada uma a seu modo, as várias interferências sobre como o visitante poderá olhar a paisagem e considerar o enquadramento proposto. A complexidade de cada proposta sobre as aberturas mescla a visão de interior e exterior, o real e o filtrado, assim como o ver através. Cada uma reforça o estímulo a relações mutáveis que se estabelecem no ato de olhar em direção ao exterior, conforme a experiência do sujeito que com elas interage. Não vem a ser a janela em si como linguagem que se coloca, mas sim o poder que ela traz de afetar a expe- riência do espectador. O olhar, através dessas janelas, desestrutura os dados da paisagem conhecida e oferece possibilidades de sua recomposição em inúmeros outros reencontros com o real.

Toda a obra de Lucia Koch, em especial voltada a revelar as potências de um deter- minado lugar, tem um princípio de base. São importantes em um mundo cada vez mais focado na homogeneização e achatamento dos lugares, conforme aponta Kwon.27 Aobradestaartistadedicaespecialatençãoaopoderdeafetarosujeito pela experiência vivida na exposição; mas muito mais, a de estimulá-lo a estendê- la para sua própria vida, para outras situações, para muito além do que ocorre na exposição, em uma significativa atitude relacional. A potência do agir, mencionada na epígrafe deste texto a partir de Spinoza, é aquela que permite ao sujeito, cuja mente se encontra na situação de considerar a si própria, passar a uma perfeição maior quando puder imaginar a sua potência de agir,28 um fato que extrapola o sentimento de ser afetado pela obra naquele lugar e de levar esse afeto singular a outras situações da vida. Desse modo, o sentimento de homogeneização e a fixidez dos lugares podem encontrar caminhos para valiosas novas relações de coexistência significativa, a partir e além da arte, ao afetarem elas a nossa vida.

Três propostas artísticas reunidas em uma única mostra, em um mesmo espaço expositivo trazem à luz uma discussão peculiar referente a lugares desdobrados. Revelam-se nelas, no entanto, naturezas diversas de obra artística, através dos ca- minhos pelos quais cada uma responde aos mesmos aspectos em suas produções.

Os trabalhos apontam profundidade em sua elaboração, em aspectos que estimulam uma continuidade de estudos a respeito, tais como possíveis alterações nas confi- gurações de lugar para estas mesmas obras; pergunta-se, pois, que outras soluções adviriam por parte das artistas? Será que a recepção seria totalmente transforma- da em outros lugares ou por outros modos de dispor as obras em exposição?

Por outro lado, destaca-se o potencial multidisciplinar e de índole multifocal das obras, ao envolverem variados focos de interesse: a existência de arquivos com conteúdo de sangue, sendo esta matéria orgânica uma das matérias da pintura; sua associação com elementos voltados a assuntos antropológicos, associados aos abates de carneiros e à genealogia de Jesus; a presença de temas vincula- dos à morte; a investigação de origens culturais e de conhecimentos religiosos; a busca de referências físicas da matéria da luz e sua interferência na arquitetura; o lugar da fotografia na produção de imagens no tempo e suas re-elaborações; os assuntos relativos à projeção e sua escala, em relação ao ato fotográfico na arquitetura, entre tantos outros.

A exposição estimula ainda discussões sobre as questões críticas que essas práticas artísticas sugerem, tais como a de estranhamento no espaço artísti- co e sua co-optação institucional, deslocamentos na concepção do lugar dos trabalhos, autoria, materialidade dos gêneros e suas relações com a pluridiscipli- naridade, assim como sobre o lugar das imagens. Todas essas manifestações en- contradas nos trabalhos expostos, e cada uma à sua maneira específica, trazem seus questionamentos ao se pensar a arte hoje, em um momento em que, mesmo conhecendo-se as dificuldades de modelar novas formas de estar no lugar, seja possível pensá-las, a partir do que estas obras apresentam, todas representati- vas de uma experiência absolutamente atual.

Enfim, encontramos no trabalho destas artistas um grande potencial, quase ob- sessivo de trabalho artístico, uma audácia inventiva e de recriações. Sabe-se tam- bém que em sua conduta experimental trarão sempre a coragem de propor trans- formações visuais, intelectuais e perceptivas, as que certamente afetarão nossos corpos por maneiras que aumentam ou estimulam nossa potência de agir, como lembrou um dia lucidamente Spinoza. Potência esta, que nos levará ao lugar certo para estar, que, como diz Kwon, “o único de onde poderemos encarar os desafios das novas ordens de espaço, do tempo e do lugar”.

2008