Bernardo José de Souza
Dentre as muitas experiências às quais está aberta a obra de Lúcia Koch, a coreográfica parece ser aquela que melhor relaciona seus principais elementos e campos de força; a saber, os corpos, os objetos e, sobretudo, a luz.
Esta coreografia, por seu turno, se dá em planos e esferas distintas: seja através da visão (coreografia do olhar) – isto é, para onde aponta o olho humano e para onde nos leva a interpretação afetiva das imagens produzidas pela artista – ou mesmo por meio dos deslocamentos empreendidos pelo corpo humano e pelas tecnologias engendradas por Koch no sentido de nos fazer apreender uma obra que é, a um só tempo, visual, escultórica, atmosférica e sensorial. Há algo de ulteriormente racional na obra da artista, embora o que transpareça seja profundamente sensível, de uma ordem quase mística, transcendental.
Koch é gaúcha de origem, aqui começou a dar corpo a um repertório que jamais seria por ela abandonado, fosse no Ocidente, no Oriente, no Brasil ou na Turquia, num espaço público ou privado. Sua obra existe dentro e fora, num plano mental ou mesmo físico, aliando a fluidez da memória à aparente solidez da arquitetura. Uma espécie de mágica é operada por Koch em suas instalações, a qual se dá no lapso entre passado, presente e futuro – o que fora visto ou configurado num instante se desfaz no outro, demandando um renovado foco de visão, estado de espírito, posicionamento diante de uma realidade diáfana e mutante.
Entre a escultura, a instalação e a fotografia, sua trajetória deriva na construção de espaços etéreos, efêmeros, senão ficcionais, sujeitos às mudanças de clima ou afetivas, pois o que está em jogo é sempre o viés crítico do espectador, ou melhor, deste terceiro elemento fundamental à sua obra: o homem e seu instável campo de visão.
A relação, portanto, entre sujeito e objeto ganha um dinamismo particular, pois o que a visão acusa trai, logo a seguir, a percepção primeira, exigindo um posicionamento impossível (do ponto de vista físico) a qualquer ser humano, qual seja, a capacidade da onipresença, de estar lá e cá a todo tempo, a um só tempo. As perspectivas constituem, neste concerto formal e estético, a chave para um mundo que não pertence nem a ela, autora dos trabalhos, nem a ninguém; sua obra é dona de si, e de todos aqueles que por ela transitam, que a ela veem e se deixam atravessar dos mais variados modos, em tempos os mais diversos – um tempo que se propaga em muitas direções, para o passado, na velocidade da luz, e para o futuro na expectativa do que virá a ser, com toda sua força antecipatória.
Em suas fotografias dos interiores de embalagens, que acabaram por se tornar uma marca registrada, mas também em suas configurações escultórico/espaciais de luz e sombra, homem, tecnologia e arquitetura, há sempre o desejo de estabelecer uma relação que torna a experiência humana maior que a vida, como se por trás do caráter mundano de suas construções sobreviesse um impulso místico, quase religioso. Há, sem sombra de dúvida, uma dívida com as igrejas, templos e seus altares, mas também com o conhecimento humano amalgamado ao longo da história e da sabedoria transmitida de geração a geração através dos espaços construídos pelas civilizações: suas casas, seus sítios de convívio, de lazer, suas áreas de contemplação, de luto e de celebração.
Em Porto Alegre, nesta ocasião, Lúcia Koch propõe um trabalho que está dado à cidade ver, fruir, experimentar: cortinas em degradê que remete à cores do pôr-do-sol que revestem a fachada da antiga Península, espaço independente localizado no Centro Histórico – uma espécie de segunda pele que respira com o vento. Um projeto voltado ao rio e ao homem que atravessa o espaço urbano, caminha de casa ao trabalho, das ruas ao Guaíba. Um trabalho com luz própria, pois existirá mesmo quando todos dormem e sempre mudará caso assim queiram nosso humor, o tempo, a chuva e o sol.
2019